terça-feira, 4 de agosto de 2009

Conto "Nascer de novo"

A minha dedicação a escrever com regularidade e organização, começando a aprender a aplicação das técnicas de redação voltada para textos literários, posso dizer que começou em 2004, quando fui participar uma oficina de literatura no SINPRO – Sindicato dos Professores do Rio de Janeiro, conduzida pelo poeta e escritor, Cairo de Assis Trindade. Com o encerramento da oficina no SINPRO, migrei para a Oficina de Literatura Cairo Trindade .
A partir desse ponto comecei a encarar a arte de se expressar pela palavra escrita com um enfoque diferente do que me conduzi pelos anos anteriores de minha vida.
Abriu-se um mundo novo, no começo meio assustador, para quem achava que o que se escrevia era propriedade individual, egoísta e que seria para se guardar para si. Agora, eu passava a escrever para ser lido.
Bem, quero aqui, fazer apenas um preâmbulo a esse conto. Sempre escrevi textos muito longos. Acreditava que tudo deveria ser dito ao leitor. Talvez resultado da minha vida profissional na área técnica, em que se exigiam relatórios muito extensos e detalhados de tudo que se fazia. Estudar tem me mostrado que o leitor tem o direito de colocar a sua história dentro na nossa história, ao lê-la. Descobrir junto. É um parceiro, pois não existe escritor sem leitor.
Os meus textos, tanto contos quanto poemas sempre foram muito longos. As aulas, as revisões, a leitura e observação de outros estilos de escritores têm me trazido um aprendizado ao modo contemporâneo de se escrever. Temos que escrever para os leitores do nosso tempo. E, o poema de João Cabral de Melo Neto, “Catar feijão” é o meu guia.
Ainda estou muito longe de ter um texto com o qual eu me satisfaça. Mas já sorrio quando os leio, ao ver que estou evoluindo.
Esse conto, embora um pouco longo nos moldes da literatura moderna, faz parte do meu aprendizado e do exercício de domar a minha ainda prolixidade.
Tenham paciência, eu peço. Creio que a história é boa. A forma, eu aprendo aos poucos.


Nascer de novo
Jopin Pereira

– Xerxes, vem cá menino! –, ouvia a longínqua voz que insistia. – Xeeeeerxes!
Pensava: “Mas nem aqui a vó me larga, caramba! Deve tá me avisando a hora de acordar. Era a única que acertava o meu nome.”.
Acordou despertado pelos gritos do carcereiro, anunciando, desde lá do fundo da galeria, a chegada do café. Continuou pensativo, mas com uma ansiedade que há muito não lhe acontecia.
O murmúrio na cela já era crescente, desde quando os primeiros raios do sol chegaram pela janela no alto da parede, que mesmo coberta de pela cortina de jornais, ainda filtrava a forte luz.
Os companheiros das celas já batiam as canecas, latas, copos nas paredes e nas grades; um ritual para acelerar a chegada daquele morno café com leite, ralo, já adoçado, e o pãozinho com uma margarina que parecia mais a sebo. Uma borra de alguma coisa que restou do leite. E o queijo? Gosto de sabão! Bem, isso hoje vai acabar.
Por bom comportamento e já tendo cumprido parte da pena, além das recomendações e interferências da defensora, que muito se afeiçoara a ele, rapaz de boa índole que caiu ali por um acidente da vida, foi-lhe concedida liberdade condicional.
No canto do beliche, ao lado de um arremedo de travesseiro – uma almofada do time, que o primo havia trazido um dia – jazia desde a véspera a mochila esmolambada, com seu nome grafado por uma Bic da vida, como um atestado de propriedade. Abrigava naquela mochila poucas coisas, badulaques sem importância – não quer levar nenhuma lembrança dali – e o bem mais precioso, a sua lista de nomes.
Volta o olhar para o nome escrito na mochila: Xexéu, do qual ele tinha ódio mortal e, já arrumara diversas confusões, desde o tempo de escola. Lembra que um dia, na volta pra casa, confidenciou pra avó: – Vó, hoje fui na biblioteca ver o que significa o meu nome. Nome não, alcunha, agnome, alcunho, antonomásia, apelido, apodadura, apodo, cognome, cognomento, cognominação, epíteto, prosônimo, titulatura, velacho. – Que isso minino? Quanto palavreado isquisito! Parece palavrão. Olha o respeito, hein! – esbraveja a avó.
– Eu achei tudo isso num dicionário. Sabe o que significa esse ridículo apelido de Xexéu pelo qual me chamam desde a infância? É “odor desagradável em homens ou animais; bodum, catinga”, diz o dicionário. E ele vem puxado desse maldito nome de batismo: Xerxes. Apesar de que esse é melhorzinho . Diz lá, até anotei: – “rei persa, filho de Dario I, herdou o trono; guerreou contra os gregos, derrotou o exército de Leônidas, vencendo a Batalha de Termópilas; saqueou a Ática, e tomou Atenas, arrasou os santuários da Acrópole; retornou à Pérsia (onde mais tarde morreria assassinado) ; nos últimos anos de reinado dedicou-se à construção de palácios e monumentos que contribuíram para o embelezamento de Persépolis”. O cara era fogo vó! Sou de paz, eu não mereço isso, vó!
Só porque o pai, que ele só sabia ter existido e nunca viu, nem em foto – morreu num tiroteio com a polícia na boca-de-fumo – assistiu uma vez a um filme desse tempo, e ficou admirado com esse tal rei Xerxes e resolveu impingir esse nome ao garoto.
– Bem que tu se livrô de sê pió, minino – dizia a vó Tereza, – pois teu pai queira primero te chama de Ataxexo, perái, deixa eu ler. Ele até escreveu ali na parede. A-T-A-X-E-R-X-E-S – destacando cada letra, para não ter dúvidas –. É, o Tião achava esse nome muito bacana. Mas tu mãe não deixou. Ficou só Xerxes mesmo.
– E por que então inventaram de me chamar Xexéu, vó? , perguntava com tristeza.
– Ninguém conseguia falar Xerxes. Diziam que dava nó na língua – tentava explicar a vó Tereza . Então, tu virou Xexéu. E, além do mais, pobre tem mania de não chamar filho pelo nome que registra, inventa sempre um apilidinho. Tu num vê teus primos? Zezinho, Tuninho, Betinho, Lulu, Bibica, Tião, Quim; essas currutelas do nome de batismo. É mais fácil. Quem vai guardar esse nomão? E, saindo de mansinho, a avó dava um sorrisinho bem safadinho, que ele fingia não ver: – rê...rê..rê..rê.
Até no cartório, – sua mãe contava – para registrar a criança, o funcionário fez cara de riso e perguntou: – É Xerxio mesmo o nome da criança? O pai quase esgoelou o dito cujo. Ainda bem que ela levara escrito o nome num papel, para não errar, pois o próprio pai pronunciava “Xerxi”.
Em qualquer lugar onde perguntavam seu nome, sempre a mesma chateação. Nunca entendiam de primeira, e sempre a indagação era acompanhada de um sorrisinho dúbio, entre o irônico e o sacana mesmo:
– Pode repetir, por favor, senhor...desculpe...o que? Xerxo...Xerxi..? Como é que é? E, para mais maltratar, ainda ouvia muitos “– É com “xis” ou “ceagá”?”
Namorada então, era um sufoco. Chegou até a inventar outros nomes, mas elas sempre descobriam, e a gozação interrompia o namoro. Na escola, a mesma cantilena se repetia. Certo dia um colega chegou com a frase, falando alto: – Xerxes achou um chuchu chocho num tacho sujo. Aí, foi uma festa para a classe. O guri fazia aulas com um fonoaudiólogo e, naquele dia este lhe dera uma frase, um “trava-língua”, para exercitar a dicção. Acabou na secretaria, com uma suspensão de três dias, depois de socar o moleque.
Certo dia confidenciou ao amigo, o único em quem confiava ali na cela: – Sabe Bilé, vou sair daqui e trocar de nome. Foi ele que me trouxe pra cá e pra essa vida. Tu quer saber a história? Mas num conta pra ninguém, tá? Agora que tá perto de eu sair preciso falar pra alguém.
– Fica tranqüilo mano. Tu é meu. A vó Tereza é minha madrinha e tu é meu mano de fé. Bilé é da malandragem, mas pra você sou da família.
– Lembra daquele cara, o Bigorna, que tomava conta da boca próxima do meu barraco onde morava com a minha vó. Pô, mano, meu amigo de infância, criado aqui, jogando bola todo dia. De repente deu de fazer onda com meu nome. Ele sempre me sacaneava quando eu ia para o trabalho. Todo dia inventava uma gozação diferente. Talvez, porque tenha tentado me levar pra trabalhar lá no movimento e eu nunca aceitei. Não queria ter o fim do meu pai. E depois que contaram pra ele a origem do meu nome, aí piorou. Me chamava de guerreiro chocho, de rei sem coroa, etc. Eu já não suportava mais o avançar da humilhação, e tudo que ele falava virava lei por ali. Até o dia em que resolveu me chamar de Xuxa. Dizia que eu era frouxo para trabalhar ali na boca. Que deveria pintar o cabelo de louro. Que achava até que eu era bicha. Que tinha cara de “Paquito”. E a gozação se estendeu aos demais participantes da boca. Todo mundo me sacaneava, meu irmão.
– E aí, cara? Se fosse eu já tinha estourado antes, pô! Tu deu moleza muito tempo. Vai, conta esse lero logo – dizia Bilé, já impaciente.
– Minha vó me pedia para eu segurar a barra até melhorar no trabalho e mudar dali. Pra num arrumar confusão. O Bigorna não tinha nada a perder, mas eu tinha tudo, se me metesse com ele. Cara, aí, um dia eu não agüentei mais! Foi quando ele mandou pintar na minha porta o nome “Xuxa”! Arranjei um trezoitão com um pivete do morro e fiquei preparado. Assim que saí de casa naquele dia ele me zoou. Cara, fechei os olhos e apertei o gatilho com vontade; sem dó do safado. A bala atravessou o joelho e ele ficou manco pro resto da vida. Vida curta, pois não durou muito naquela lida. Soube pelo meu primo que numa batida policial vazaram com ele Eu sumi do morro por uns tempos.. A polícia me achou na casa de uma tia na Baixada. Uns caras da polícia, que tinham uma transação com ele. Dei sorte de não me apagarem. Fui preso e condenado a três anos. É isso aí a história do Xerxes que, em vez de ser rei e guerreiro, virou o presidiário Xexéu, o fedorento.
Seu desejo maior era, quando saísse dali, mudar de nome. Já haviam lhe falado que isso era possível. Demorava um pouco, mas poderia ser conseguido. A defensora que o assistia disse que iria ajudá-lo. Tinha bons conhecimentos em cartórios e tantos argumentos para isso.
Pensava todo dia em qual seria o novo nome. Fez uma lista. Iria procurar antes o significado deles. Não queria mais passar vergonha nem arranjar problemas em carregar um nome estranho. Já tinha até mandado um recado para a avó: que ela falasse com a família e com os amigos e vizinhos, que não queria mais ser chamado pelo tal nome. Nem queria repetir. Quando saísse dali teria um novo nome para uma nova vida.
Já vestido para sair, despediu-se dos companheiros. O carcereiro que veio buscá-lo fez uma revista completa, até na mochila. A defensora pública, Dra. Sonia, já o esperava na secretaria: – Oi menino, chegou o grande dia, não é?
As emoções o deixavam anestesiado. Um misto de alegria, uma certa saudade – incompreensível – daquele estranho lugar, um certo medo da nova vida, do que iria encontrar lá fora e de como seria olhado. Absorto naquelas imagens é despertado pelo chamado do rude e desinteressado funcionário, para as praxes de saída.
E, logo depois que assinou o alvará de soltura e recebeu as recomendações quanto a comportamento, restrições, punibilidades, etc., a Dra.Sonia entrega-lhe um envelope, pedindo que o abrisse. Ansioso e curioso rasga um lado, sem muito cuidado. Ela me pede calma. Uma folha de papel, única, timbrada, com um nome de cartório a se destacar. O que tem ali dentro? É uma certidão de nascimento? É mesmo, está no título, uma certidão. Uma emoção maior o faz transpirar e acelerar o coração. Ali, a minha nova certidão de nascimento! Uma sensação de alegria me invade e já prevendo o que iria encontrar naquele papel, percebo o sorriso da minha defensora. Ali está o meu novo nome: Sérgio Alberto da Silva.
Sérgio ainda traz uma vaga lembrança de Xerxes, mas a defensora convenceu-o de que seria melhor assim por estar mais próximo do antigo. As pessoas que lhe conheciam se acostumariam mais depressa e com mais facilidade. Até ele mesmo. Mas era bonito. E o Alberto daria o complemento, o respeito e segurança necessária para limpar as lembranças. Pensava: “Vou fazer questão de ser chamado pelos dois nomes: Sérgio Alberto. Dá importância. Nada de Betinho, Serginho ou outros tais. “
A defensora inaugura o novo nome: – Sérgio Alberto, vou levar você até a sua casa. Vó Tereza está ansiosa pelo neto de novo nome.
Na cabeça dizia: “O antigo ficou aqui, para sempre, junto com a história que te trouxe aqui.”
No carro ia repetindo em voz alta, num tom crescente: – Sérgio Alberto, Sérgio Alberto, Sérgio Alberto, Sérgio Alberto, Sérgio Alberto, Sérgio Alberto. Preciso repetir incessantemente, pois eu mesmo preciso me acostumar.
As lágrimas então começam a romper. Xerxes, digo Sérgio Alberto abraça-se àquele envelope. Suas novas sensações, de um novo homem, que o nome veio trazer. Inaugura ali as emoções do seu novo mundo, como se nascesse de novo.

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